É comum ouvirmos discursos rebuscados para laurear o 7 de setembro de 1822 como o dia em que das margens do Ipiranga ecoou o grito de liberdade. "Independência ou morte!", teria, supostamente, gritado d. Pedro I para proclamar a independência do Brasil. Tal gesto representativo do rompimento da colônia com a metrópole portuguesa criaria o Brasil independente.
Porém o mero floreio de palavras não dá conta de explicar o quanto a data histórica pode importar para o Brasil de hoje.
Primeiro, cumpre reconhecer que a independência do Brasil não se restringe a um grito isolado de um homem isolado em um rio qualquer. Não foram as cordas vocais de um proclamado herói que a produziu. Antes, o libertar-se das amarras portuguesas é resultado de um processo que começou com o desgaste nas relações entre a elite colonial brasileira com a corte de Portugal.
Explico.
Em 1808, motivado pelas tropas de Napoleão que invadiam Portugal, d. João VI juntou as tralhas, reuniu a família e saiu em desabalada carreira para o além-mar, a fim de "tirar umas férias" de 14 anos na colônia. Estabelecida no Rio de Janeiro e livre do bafo quente do imperador da França na nuca, a família imperial promoveu no Brasil um grande desenvolvimento econômico e um significativo florescimento cultural.
Nesse ínterim, o Brasil sofreu um up grade. Em 16 de dezembro de 1815, o país deixou a condição de colônia para fazer parte do reino de Portugal. Nascia, assim, para o desagrado da elite portuguesa e alegria da elite brasileira, o Reino de Portugal, Brasil e Algarves.
Contudo o desejo por um Brasil independente começou a nascer quando a elite brasileira percebeu que entre os portugueses grassava o desejo de restabelecer os laços coloniais. Nesse contexto, separar passou a ser a melhor opção política. O titubeante príncipe regente, por aqui deixado após o retorno da família real para Portugal, em 1822, acabou sendo constrangido a seguir o caminho da independência.
Quanto ao tal "Grito do Ipiranga", existe dúvida se ele de fato aconteceu. O que se tem como certo é que ocorreu uma sessão extraordinária convocada pela d. Maria Leopoldina e presidida por José Bonifácio, em 2 de setembro de 1822. Foi ali que se entendeu ser o momento de declarar o Brasil como Nação autônoma. Sob os auspícios do "Patriarca da Independência" e o aval da esposa do Príncipe e futura Imperatriz Consorte, o documento da independência foi redigido e enviado para d. Pedro, que, na ocasião, lidava com um desarranjo intestinal a caminho de São Paulo. O mensageiro o alcançou exatamente no dia 7 de setembro de 1822.
A independência, portanto, não foi fruto de um mero grito, antes decorreu de um processo histórico, com seus casos e acasos. Não foi consequência do ato heroico de um homem, ela se fundamentou na convergência de acontecimentos que a tornaram inevitável. E isso deve nos ajudar a compreender o Brasil para além do isolamento de atos, de fatos e de figuras. Nosso país rico, diverso e, em certa medida, livre não precisa ficar eternamente dependente de figuras "paternas" para se reconhecer enquanto nação.
É preciso se ter claro, por outro lado, que a independência "gritada" pela elite da época não é plena. É bem verdade que a elite de hoje goza da liberdade almejada há 201 anos, porém existem brasileiros que ainda não sentem o prazer de serem livres e independentes por completo. E aqui não estou falando da relação colônia/metrópole que se exauriu em 1822. Falo das amarras impostas aos pobres pela falta de oportunidades. Escrevo do racismo que mata negros nas favelas, nos becos e nos asfaltos. Digo das barreiras e limitações impingidas pelo capacitismo às pessoas com deficiência. Refiro-me ao preconceito que alija dos processos as minorias.
O preconceito, as discriminações, o capacitismo, entre outras mazelas que concorrem para a invisibilidade de parcela dos brasileiros são amarras que devem motivar nossa constante luta por independência. Que gritem os pretos, "ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres", desde as comunidades onde não existe Estado. Que ecoe o grito, com a voz e em gestos, das pessoas com deficiência por inclusão e acessibilidade. Que se façam ouvir as vozes das mulheres e da comunidade LGBTQIA+ por espaços.
Gritemos a todo pulmão e não desistamos de gritar! Pois o processo histórico por liberdade segue seu curso, e às suas margens o grito das minorias por independência deve ecoar: INDEPENDÊNCIA AO INVÉS DE MORTE!